Conto: Helena | Nana Pauvolih

Conto: Helena

Helena - Série Segredos
Conto originalmente  publicado em Setembro de 2016 em comemoração aos 2 anos do lançamento do ebook independente "Ferida'  na Amazon!
Disponível em ebook junto do conto "Theo e Eva":
Amazon BR: https://amzn.to/2BJmjTA


Helena
Eu estava sentada sobre a manta colorida e sentia o vento suave bater em meus cabelos. Gostava de dias assim, claros e reluzentes, onde todas as cores da fazenda se sobressaíam: o verde mais claro dos campos, os mais escuros das folhas das árvores, as flores por todo lado, os tons entre cinza e prata das pedras, a água cristalina que descia da cachoeira e formava um pequeno lago azul.
Ali, na terra da minha família, eu me sentia viva e pulsante. Sabia que era meu lugar, de onde nunca sairia.
Em minhas veias corriam o sangue dos Amaro e dos Falcão, de duas famílias inimigas no tempo. Eu conhecia a história. Já estava com catorze anos, sabia de muita coisa. Aliás, tinha diante de mim o resultado daquele ódio: meus pais. Contra todas as possibilidades, eles venceram através do amor. Eva Amaro e Theo Falcão.
Meu irmão estava ajoelhado na areia úmida da margem, fazendo esculturas de lama. Era uma réplica em miniatura do nosso pai, moreno, olhos azuis. Mas as semelhanças paravam por aí. Theo Júnior tinha os olhos doces da mamãe e era tão meigo quanto ela. Eu era louca por ele e estava sempre atenta, pronta para defendê-lo como uma leoa se alguém se metesse em seu caminho.
Suspirei, pois meu sangue já fervia com aquela possibilidade. Sacudi um pouco a cabeça e a coroa de flores sobre meus cabelos quase escorregou. Deixei-a ali, pois minha mãe tinha feito para mim durante o piquenique e eu não queria desapontá-la. Mas não era muito meu estilo. Preferia o chapéu do meu pai, botas e estar em cima do lombo de um cavalo.
Era engraçado que eu fosse tão parecida com minha mãe fisicamente, pequena e com longos cabelos loiros, enquanto meu gênio era um clone do meu pai. Eu sabia que ele adorava isso. Theo Falcão era o melhor pai do mundo para mim e para o Júnior, mas entre nós dois tinha uma comunhão única. Éramos unha e carne.
Meus olhos foram para eles, ali perto.
Ele estava recostado ao tronco de uma árvore, sentado, os cabelos negros entremeados de poucos fios brancos. Era moreno, com uma beleza agressiva e olhos azuis afiados, sempre atentos a tudo. Olhava pra gente e via de verdade, até a alma. Nunca tinha um olhar distraído. Era duro, firme, mas suave nas horas certas e para as pessoas que amava. Eu sabia que podia contar com meu pai para sempre. Ele era meu guardião, meu protetor, meu herói e meu melhor amigo.
Recostada em seu peito, minha mãe estava entre seus braços, os longos cabelos loiros soltos, o rosto plácido e feliz. Contava algo e sorria. Ela sempre sorria. A coelhinha do meu pai o amava com uma loucura nunca vista. Talvez apenas compatível com o amor que ele sentia por ela.
Eu vinha de uma família onde os homens amavam pra valer, sem trégua. Era assim entre meu tio Joaquim e minha tia Gabi, entre Micah e Valentina, entre Pedro, Lara e Heitor. E tinha sido com meu avô, Mário. Infelizmente ele já tinha falecido há alguns anos. Mas eu ouvi muito sobre como amou minha avó Alice. E como foi amado por ela, o que ele só descobriu pouco antes de morrer.
Suspirei de novo e pensei em Tomaz, o rapaz de quinze anos, filho do novo capataz da fazenda, que tinha chegado para morar ali há pouco tempo. Remexi-me, inquieta, um pouco nervosa.
Era estranho, pois desde que o vi pela primeira vez, senti coisas desconhecidas. Uma agitação, uma quentura por dentro. Bastou fitar seus olhos escuros e eu, a durona Helena Falcão, tremi na base. Ridículo! Muito ridículo!
Na verdade, aquele garoto era um metido. Eu odiava o modo como montava bem e laçava o gado, se achando melhor que eu, que nasci ali e aprendi desde cedo aquele ofício. Em tudo ele se destacava e até meu pai já o elogiara. O pior era que ele me desconcertava e tirava minha atenção. Eu sempre acabava fazendo besteira, como se esquecesse de tudo sob o olhar dele e virasse uma garotinha boba. Que ódio!
- Hei, Helena, que cara feia é essa? Coitada da flor!
A voz da minha mãe chamou minha atenção e percebi que eu esmagava uma flor do campo na mão direita. Parei na hora e fiquei sem graça, percebendo o olhar dela e do meu pai sobre mim.
- Não estou de cara feia. – Levantei, ajeitando a calça jeans, pouco feminina. Senti-me ridícula com aquelas flores no cabelo, até coçaram, mas não tive coragem de tirá-las. Amava tanto a minha mãe, que nunca fazia nada que pudesse magoá-la. – Só não tem nada pra fazer aqui. Já lanchamos, vocês estão aí namorando e o Theozinho só quer saber de brincar! Estou entediada!
- Queria estar no lombo de um cavalo. – A voz forte do meu pai chamou minha atenção e o olhei na hora, animando-me.
- Sim. Quer apostar uma corrida comigo? – Desafiei.
Theo Falcão mirou-me com um misto de seriedade e orgulho. Beijou a face da minha mãe e disse baixo:
- Coelhinha, ela não se cansa de tentar me ganhar em uma disputa de cavalos.
- Vocês dois são iguais. Não conseguem ficar parados! – Minha mãe, já sabendo onde aquilo ia dar, começou a se levantar.
Quando os dois ficaram de pé, ele a puxou para os braços e falou, perto de sua boca, fitando-a com intensidade nos olhos:
- Não demoro.
Desviei os olhos, pois às vezes eles me deixavam sem graça com aquele amor todo. Meu pai nunca disfarçava que era louco por ela e minha mãe retribuía com igual fervor. Às vezes me perguntava se um dia eu amaria assim, se seria amada assim.
Pensei novamente em Tomaz, no calor que me subia pelo corpo, nas sensações novas e estranhas que despertava em mim. Não queria sentir aquelas coisas, ser uma garotinha boba. Nem me apaixonar. Só me daria a alguém se fosse um amor como dos meus pais, nada menos que isso.
- Vamos, Falcãozinha? – Meu pai me chamou, já caminhando até seu cavalo amarrado ali perto.
Eu me animei na hora e o segui. Ao passar ao lado da minha mãe, tirei a coroa de flores do cabelo e dei a ela, enquanto beijava suavemente seu rosto e pedia:
- Guarda pra mim?
- Sim. Tome cuidado. – Ela me beijou de volta.
- Quero ir também! – Júnior veio correndo para perto, mas minha mãe disse sorrindo:
- Vão me deixar sozinha aqui?
- Cuido de você, mamãe. – Ele se decidiu logo e a abraçou.
Sorri e corri atrás do meu pai, já montado no cavalo negro.
Eu sentia o sangue correr forte nas veias, a animação e o desafio me dominando. Fui desamarrar meu cavalo, doida por aventura, por sentir o vento no rosto e ganhar os campos em velocidade.
- Vamos contornar aquele grupo de árvores e quem chegar aqui, ganha. – Ele avisou, quando montei e fui para seu lado. Acenei na hora. Antes de ir, deu-me um olhar sério. – Lembre do que eu sempre falei. Controle seu cavalo. Observe o terreno. Seja audaciosa, mas não irresponsável.
- Sim, senhor. – Falei séria também, pois sabia que se preocupava comigo. – Pronto para perder?
A ruga entre seus olhos se desanuviou quando sorriu, seguro de si.
- Acha que algum dia isso vai acontecer?
- Hoje.
- Quero ver.
- Vai ver.
- Tomem cuidado, vocês dois! – Gritou minha mãe.
- Quando eu falar “já”. – Disse Theo Júnior e gritou: - Já!!!
Disparamos, lado a lado.
Meu coração disparou junto.
Senti o vento, a velocidade, a emoção. Incentivei meu cavalo a correr, gritando, me preparando para felicidade indescritível de ser livre e saber o meu lugar no mundo.
Corremos e, quando vi meu pai com uma boa diferença na frente, abaixei-me mais sobre o cavalo e o incentivei, desafiadora, ansiosa, palpitante.
Fui me aproximando. Comecei a achar que eu tinha chances e me concentrei ainda mais. Estava quase emparelhando com ele.
Tivemos que diminuir a velocidade quando chegamos no grupo de árvores, para contorná-las. Gritei eufórica quando disparei primeiro e passei na frente dele. Ria, berrava, me soltava. Vi o cavalo preto se aproximar e ficar ao meu lado. Olhei-o e depois para meu pai.
Ele me fitava não com raiva, mas com orgulho. Seus olhos azuis brilhavam. Isso foi antes de acelerar e me passar, desafiador como sempre, um homem que não admitia perder nunca, que tomara a vida com as mãos e fizera dela o que tivera vontade. Eu me orgulhava dele, me espelhava, seguia seu caminho. Theo Falcão era meu ídolo.
Chegamos quase empatados, mas ele ganhou por pouco.
Quando paramos, foi o primeiro a pular fora. Saltei e me puxou para seus barcos, dando-me um abraço e beijando meus cabelos, dizendo:
- Você quase ganhou.
- Quase ... – Resmunguei, enquanto caminhávamos abraçados até minha mãe e irmão. Nossas respirações eram arfantes e pesadas, nossas peles meio suadas. – Devia ter me concentrado mais.
- São dois loucos! – Minha mãe reclamou, mas logo se derreteu toda quando meu pai foi até ela e a envolveu entre os braços, beijando seu cabelo. Apertou-o, ergueu o rosto e sorriu, enquanto se fitavam.
Revirei os olhos.
Meu irmão veio para mim, todo animado, abraçando-me.
- Você chegou a ficar na frente do papai, Helena! Não ganhou por pouco!
- Na próxima eu ganho. – Garanti, segurando-o contra mim. Tinha a sensação de que deveria defendê-lo e protegê-lo vida afora. Ou talvez não. Júnior tinha uma força silenciosa, que às vezes me surpreendia.
Sorri para ele. Não estava com raiva. Estava feliz.
Meus olhos passaram pela cachoeira, pelas terras à vista, pelo céu infinito sobre nós. Vi meus pais ali de pé, falando algo baixinho.
Tinham enfrentado o mundo para ficarem juntos. Aquela fazenda viu o amor deles florescer e vencer. E se consolidar, dia a dia.
A Fazenda Falcão Vermelho tinha começado com meu avô, Mário Falcão. Estava agora sob a administração do meu pai e dos meus tios. E um dia passaria para mim, para meu irmão e para meus primos.
Uma nova geração, com novas histórias e conquistas.
E nosso sangue lá, firme, se misturando com a seiva das árvores, com o mugido do gado, com tudo que fazia parte da nossa essência.
Enquanto eu olhava ao longe, imersa em meus pensamentos, vi dois cavaleiros se aproximando. De imediato reconheci um deles, o rapaz alto e forte sobre seu cavalo marrom. Foi estranho como meu coração disparou, ainda mais forte do que quando estava disputando a corrida.
Tentei conter aquele rebuliço todo dentro de mim e tive uma espécie de medo daquelas sensações todas. Não podia estar apaixonada. Tinha só catorze anos e aquilo era para garotas bobas.
Mas meu coração continuou em sua batida louca.
Olhei para meus pais. E indaguei a mim mesma como meu pai reagiria se soubesse como eu me sentia sobre Tomaz. Aquele rapaz misterioso e calado que mexia tanto comigo, sem esforço algum.

Era melhor nem saber.

FIM.

Obs: Conto único. Não possui continuação e não irá se transformar em livro. 

ARTE
Conto Helena - Nana Pauvolih